13 de agosto de 2006

Letras 4

Auto-explicação
Olavo de Carvalho Época, 14 de julho de 2001

O articulista faz uma confissão pessoal

Como há um só articulista que escreve habitualmente contra o socialismo na imprensa de circulação nacional, e como o peculiar conceito socialista de democracia exige que não haja nenhum, todos os artifícios – da difamação às ameaças, da chacota à afetação de silêncio superior – já foram tentados para persuadir esse um a mudar de assunto. A última moda é adulá-lo, elogiar-lhe o estilo, lamber-lhe o ego até o total amolecimento de seu juízo crítico e então, quando ele está indefeso e derretido num mar de lisonja, lançar-lhe à queima-roupa a insinuação fatal: “Desista”.

Sugestão análoga às vezes vem de pessoas boas, sem nenhuma intenção perversa. É no olhar e no tom que se discerne, nas outras, o intuito de calar o articulista.
Infelizmente esse articulista sou eu. Digo “infelizmente” porque, com outro, o ardil talvez funcionasse. Já comigo ele não tem a menor chance, sendo eu uma alma impérvia e coriácea, sem outra ambição na vida senão a de fazer exatamente o que tem feito.

Os senhores – falo de meus aduladores interesseiros, e não dos demais leitores, é claro – não têm a menor idéia de como é bom, para um sujeito que ajudou a construir uma mentira na juventude, poder desmontá-la na maturidade, tijolo a tijolo, com a meticulosidade sádica do demolidor que não se contenta em derrubar paredes, mas quer ir até o último fundamento, arrancar a última pedrinha do alicerce e deixar o terreno limpo e nu como antes do início da construção.

Poder fazer isso é uma libertação, um alívio, uma antecipação terrena da paz eterna. Nada do que os senhores possam me oferecer vale isso. Nada. Muito menos a lisonja, que é a mais instável e inflacionada das moedas.

Mas não pensem que, quando falo em libertação, me refiro ao arrependimento, no sentido moral do termo. A libertação de que falo não é só moral, é existencial, é ontológica. É descobrir e provar, diariamente, que a vida humana não tem de ser um teatrinho de papelão, que ela pode ser integralmente real, que um homem pode passar do auto-engano e da farsa interior a uma existência de verdade, como Pinóquio deixou de ser um boneco para se tornar menino de carne e osso.

Nessas circunstâncias – repito Oscar Wilde –, dizer a verdade é mais que um dever: é um prazer. Mais que um prazer, é uma autêntica exaltação da alma, que ao descer da ilusão aos fatos descobre, pela primeira vez, a dimensão da altura e da profundidade, a estatura real do espírito. É uma descida que é ascensão, se me entendem.

Mas não entendem, não. Pessoas como os senhores não concebem o abandono das ilusões senão – mui estereotipicamente – como a troca dos belos ideais de juventude pelo realismo cru e egoísta da maturidade. Não vendo o que nesses ideais há de pura vaidade e soberba, de pura volúpia de poder camuflada em belas palavras, não podem compreender o que há de legítimo idealismo no sacrifício maduro da mentira juvenil. Aqueles que, abandonando o socialismo, caíram na amargura cética ou no oportunismo cínico não o abandonaram verdadeiramente. São seus escravos e hão de sê-lo eternamente. Cultuam-no em imagem invertida: vendo ainda nele o bem e lamentando apenas que seja um bem impossível, aderem à realidade como quem, após longa resistência, cede a uma tentação aviltante. Deixam o socialismo como quem trai um deus sem cessar de amá-lo.

Esses não entenderam nada. O socialismo nunca foi um deus ou um ideal. Foi uma mentira demoníaca e uma exploração da fatuidade das multidões. Abandoná-lo não é perder um ideal: é reconquistar a vida, a alma, o sentido do dever e a dignidade da missão humana.

É para mostrar esse bem aos que ainda o desconhecem que escrevo contra o socialismo. Os senhores, que não sabem nada disso, podem me atribuir projetivamente os motivos mais estapafúrdios: ódio, inveja, ressentimento, fanatismo, o diabo. Pouco me importa. Eu sei o que estou fazendo, e os senhores não sabem o que dizem.

“Como é bom, para quem ajudou a construir uma mentira na juventude, poder desmontá-la na maturidade”

Um comentário:

Anônimo disse...

Engraçado perceber, Marcelo, que de certa forma contra o seu discurso, essa tua atitude de escrever sobre este tema no seu blog, te torna um socialista que transmite para "os senhores" uma noção de auto-ajuda através da sua ideologia, que apesar de eu saber que é colocada em prática por você, é inegavelmente transmitida pela forma de ideais. Mentimos diariamente, e concordo com você quando diz que poucas experiências são tão sadicamente prazerosas quanto a de sentir a dor da verdade atingir nossos corpos de supetão, como uma queda livre que acaba em um duro asfalto que se desfaz em uma outra queda, (ahuahuah uma imagem louca que tive sobre quebras de paradigma, porque, afinal de contas, a dor nos atinge mas somos nos que vamos de encontro a ela),claro que somente quando somos capazes de baixar a guarda para nós mesmos nos permitindo ver. A visão. Ítalo Calvino escreveu um livro que se chama “Seis Propostas para o Próximo Milênio”, e uma delas é a visão. Depois que o li, percebi o quanto lutamos a vida inteira para nos tornamos cegos e não o contrário, e fazemos isso, justamente, porque ver muitas vezes nos causa dores quase que insuportáveis, quando não insuportáveis, assim como a decepção, e para mim a mais torturante decepção é a comigo mesma. E partindo desta minha opinião, acabei por me colocar numa posição muita engraçada, não de defender, mas de justificar para você o que eu acredito que aconteça com os seus e até mesmo com os meus “senhores”, e não serei hipócrita comigo mesma, tantas vezes. Estas cegas criaturas, e cegas por opção, trabalham de forma seletiva, tornam-se deficientes quando olham para dentro mas aguçam sua visão para olharem para fora enxergando ao longe os defeitos dos outros, e isto, quando ainda não usam suas mentes criativas para enfeitarem suas percepções com elementos negativos inexistentes. E daí se dá início a um ciclo vicioso maléfico: ninguém se melhora porque só presta atenção no outro, e o mais legal é que ainda usam o discurso de crítica positiva ou construtiva. Pois é muito mais profundo do que uma crítica, é uma fuga. As pessoas vão se distanciando de si mesmas, de suas verdades por medo de ver coisas podres lá dentro delas mesmas, aproximando-se das supostas mentiras dos outros. E aí entram tantas palavras para tentarem explicar esse comportamento tão simples tal como a "inveja" e por aí vai. Bom, quanto a só essa palavra eu digo para os “senhores”: somente tem inveja, aquele que não faz por si, e quem não tem nem coragem de olhar pra si, quem dirá de fazer, né? Covardia. E é quando se é um pouco egoísta (seria essa a palavra? Talvez no sentido vulgar) que mais se faz pelo próximo! Ora, quando eu estou bem comigo, eu faço bem ao outro! Assim concluo o que eu quis dizer lá em cima, você veio desabafar no seu blog, algo tão seu, veio fazer por si, mas muitos lerão e mudarão sua trajetória nem que seja uma vez depois de ler o que você escreveu. E foi nesse ponto que entendi o porque de escrever contra o socialismo. Porque percebi que se você pára de pensar nele, e de pensar até mesmo em outras ideologias, e começa a se preocupar a levantar uma hora mais cedo para caminhar, enfim, cuidar de si, conversar com você mesmo, os ideais socialistas passam a viver naturalmente, como conseqüência. Coloco ao lado da sua citação: “os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; resta, porém, transformá-lo”, Karl Marx. E eu digo, de dentro para fora. Transformem-se “senhores”, e senhoras e eu mesma e nós todos, tijolo quebrado por tijolo quebrado. “Nada se perde, tudo se transforma”, não é? Você disse que abandoná-lo (o socialismo) não é perder um ideal, é reconquistar a vida. Eu diria até que é conquistar a vida. Um beijo, amigo especial.

 
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